terça-feira, 30 de outubro de 2007

O mecânico


Toct, toct, toct, toct... “Cuidado com sola de madeira, rapaz”, diz um velho ao dono do par de percussões ambulantes que entra na mesma padaria onde o primeiro afoga a mulher e o amante em copos de maria-mole. O rapaz lhe dá as costas e diz logo a que veio: “Cinco pãezinhos.” O velho sorri para o desdém, traga num gole os dois últimos dedos da bebida e bate firme o copo no balcão. Sem a mesma firmeza nas pernas, vai em direção ao rapaz. Ajeita as calças e explica: “É pro bem das suas costas, rapaz. Viu? Pro bem das suas costas.” Sem retorno, o velho tira alguns miúdos do bolso, entrega-os ao caixa e, resmungando, vai para o seu caminhão. Liga-o, engata a primeira e, ao rapaz, uma última: “E pro bem da sua cabeça!” E arranca na gargalhada.

O rapaz paga o caixa, enfia o troco no bolso, põe os pães debaixo do braço e a deixa do velho caminhoneiro na cabeça. “Sujeitinho!”, exclama num daqueles pensamentos que escapam pela boca. “Como assim... pro bem da minha cabeça?” Quanto à dor nas costas... “Pode ser”, diz buscando no pulso a hora do antiinflamatório para a lombar. A dor era constante, e, no entanto, o rapaz nunca tinha apontado o dedo para os solados, culpava apenas o peso das peças dos maquinários da fábrica, onde começara ainda como aprendiz. O título de “mecânico de manutenção” nunca entraria para o seu repertório de planos quando ainda improvisava alguns trocados e repiques na bateria do seu grupo de samba. Apesar disso, já faz alguns dissídios que tira o suficiente para manter a mulher em casa, passando o café para combinar com os pães que ele leva debaixo do braço. “Aquela, sim... companheira de verdade. Aquela, sim.” Repetia a quem lhe perguntasse. “Aquela, sim!” Nem bem completava a segunda volta de chave, na fechadura do portão, e já abria a porta para recebê-lo. Sabia que era ele, pois, além do relógio e os sapatos o entregarem, assoviava e cantarolava as mesmas músicas que, inclusive, embalaram sua festa de casamento.

Durante sete, dos quase oito anos de casório, os dias úteis se repetiram com pães – quatro para ele, um para mulher – banhados em café forte; o trabalho pesado e a “que dor nas costas!”, sempre se queixava; as solas de madeira acompanhando as velhas canções; as solas de madeira, sua mulher recebendo-o na porta; as solas de madeira... “Cuidado com sola de madeira, rapaz”, lembrava-se do velho caminhoneiro. “Pior que ele tem razão. Talvez, fosse melhor trocar de sapatos... trocar, não”, corrigia-se, recordando que o mocassim foi presente da mulher. “... Vou trocar só as solas, então”, e assim entoou: “Amanhã...”, tomava emprestado um dos versos de uma das velhas canções. “Amanhã...”, sairia um pouco mais cedo do trabalho e trocaria os solados de madeira pelos de borracha. “Amanhã... Amanhããã!” (D)

E ainda que a troca das solas pareça banal, o rapaz gostava de tirar som com elas. E não se engane! Não pense, você, que dali só se pisavam sons cadenciados, previsíveis... Embora seguisse um ritmo ditado pela pressa em tomar o seu café da tarde, sabia dar andamento aos assovios, mesmo nas pausas de semáforos, por exemplo. Como se saísse de uma semi para uma colcheia, o rapaz segurava a levada em um pé só, no tum, tum, tum pulsante do bumbo, como que aguardando um sinal verde para tss, tá, tss, tá… retornar à levada da introdução. Nas quebras de ritmo, situações em que tentava se desviar de obstáculos paulistanos, como lixos, mendigos e vira-latas; ou quando descia da rua para a calçada, arranjava logo um repique, uma virada.

E foi na virada dos ponteiros que, após executar uma de suas melhores performances com o derradeiro par de madeiras, enfim, o rapaz chega à sapataria. “Luthier”, ele lê na fachada. Sorri para ironia desse que era nome dado a quem conserta instrumentos musicais. Quantas vezes não levou surdo, caixa e tom-tons para que um luthier os afinasse; e quantas vezes não houve dissonância entre ele e o pai, que ao final venceria, fazendo-o trocar baquetas por chave philips. Guardou raiva do pai até sua morte, momento oportuno para enterrá-la. Mas, ali, sentado, assistindo ao sapateiro calar seus sapatos, reviveu o episódio com o pai, sentindo um pout-pourri de saudade e indignação...

Enquanto o rapaz curte a nostalgia em ré menor, acho que vale acrescentar mais um motivo que justifique o seu apego aos sapatos. Não, dois: o primeiro é que ele se sentia, digamos... imponente com o som produzido pelo par. É. Principalmente quando andava por alguns corredores convidativos da fábrica, em que a acústica era generosa com a pulsação de seus passos, roubando dos pacotes, fitas adesivas, caixas, a atenção de certas operárias. O segundo motivo, e não menos plausível, é que ele acreditava que as solas de madeira protegiam seus pés do calor excessivo do chão da fábrica. É isso.

... paga o sapateiro, calça os novos sapatos e parte com as velhas lembranças. As mãos no bolso e os olhos no chão davam ao ritmo de seus passos o tom da melancolia. Isso ficou claro quando, momentos antes, apertou o passo para saltar uma seqüência de pisos. Foi como se percorresse todas as peças de uma bateria usando apenas as mãos. Depois, tentou até usar os dedos, com estalos e batuques na coxa, mas, nem de longe, possuíam o mesmo virtuosismo dos pés e, tampouco, o timbre da madeira. Frustrado, passou por tabloides e folders atirados pelas calçadas, de onde subia, descia, e nada, nenhum repique, nenhuma virada. Acaba de passar a padaria, também. Hoje não quer pães. Hoje não quer preliminares.

Ao chegar em casa, nem nota, mas já passa o cadeado no portão enquanto a porta ainda permanece fechada. Provavelmente, a mulher não o ouvira chegar, já que hoje, à capela, também não quis nem assovio e nem cantoria. Abre a porta, e, mesmo num raro dia de 15/20 minutos de descompasso com os ponteiros, lá está o café, cheiroso e fiel. Nhec... Um ruído que parece vir do quarto, irrompe o silêncio, onde reina o ponteiro do relógio de parede e o motor da geladeira. O rapaz acaba se animando com a possibilidade de subir e flagrar a mulher saindo do banho. Há quanto tempo não a tinha no banheiro. Talvez precisasse mais disso, de variar o cardápio, esquecer o café, comprar pães, sim, mas de queijo, de batata; voltar a tocar com seu antigo grupo nos finais de semana; quem sabe até pedir a conta na fábrica.
Ao pé da escada, o ruído, agora um pouco mais intenso e constante. Desconfiado, sobe um degrau (nhec), dois, três (nhec, nhec)... Para. O coração, não, este acelera. Sente náusea. Controla-se, engole seco. Ameaça descer (expira... inspira...), sobe. Pensa. Vai até o móvel que guarda o instrumento para momentos de improviso. Nunca o usou, guardava-o para tocar visitas indesejadas. Envolve-o na mão mais firme, usa as costas da outra mão para a testa molhada. Morde o beiço, acomoda o instrumento na case de onde o tirou. Leva as mãos à cabeça e a esfrega, esfrega e nhec e tapa os ouvidos e esfrega e nhec e tapa e nhec e pega o instrumento e aponta o passo para o nhec e tic, olha no pulso... tac, em cima para o antiinflamatório.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Preso por dirigir no Dia sem Carro

É mais ou menos assim nas manhãs de sábado: um ronco na barriga acorda uma das filhas, um uníssono “quelo mamá!” irrita a esposa e um cotovelo carinhoso me leva à cozinha. Arrasto-me até a geladeira, lá ficam os dois copos da noite anteriror, que completo com leite - 150 ml/cada. Um minuto e quarenta e seis segundos, nem quarenta e cinco, nem quarenta e sete. Este é o tempo pro sucesso dos achocolatados, pais! É também o tempo que marca a contagem regressiva para que eu livre as meninas do aperto na bexiga.

É dada a largada: - antes esfrego os remelentos - meio segundo é precioso quando se tem duas bacias de roupa pra passar, então, geralmente começo pela Babu, que fica na cama encostada à parede da porta. Babu gosta de me fazer carinho no braço enquanto se alivia do aperto; já Dorinha raramente faz isso, - Pi... Pi... Pi. - prefere encostar sua cabeça preguiçosa no vão das minhas coxas, e sempre ri quando deixa escapar um ‘punzinho’ que parece acionar o xixi. Levo as duas de volta pra cama, às vezes recebo uma mão da esposa. Quem sabe se eu a auxiliasse com o banho, não me ajudaria com mais freqüência? Bom, depois penso nisso, porque, eu não sei se você percebeu, mas o microondas já apitou há algumas linhas acima. Neste caso, mais 12 minutinhos.

É raro, mas também me atraso pra pegar os mamás quando como demais à noite. Ah! É raro também eu fazer o café. Preguiça, talvez. Mas, confesso, é por preguiça que sempre, sempre vou de carro até a padaria. Isso quando não me aproveito dos amanhecidos, mesmo... isso quando não se comemora o Dia Mundial sem Carro. O que foi? Duvida da minha consciência ambiental, é? Tudo bem que não temos ainda muito o que comemorar, afinal este é o só o terceiro dia do evento. E o fato de que a prefeitura nem sequer mencionou o Dia no site até a véspera, não paga o meu mico de espalhar óxido de nitrogênio por aí, sozinho. A prefeitura não estimula a adoção de políticas públicas de transportes coletivos, eu sei, mas a padaria não fica tão longe assim, fica? Se bem que eu ouvi dizer que hoje chove. Olha, quer saber, eu vou! Mas, eu juro, juro que se tivesse uma bicicleta... Além do mais, é cedo ainda, ninguém vai notar. E não é lei, é? Se fosse ainda dava até pra... Tá bom, eu vou. Mas antes é bom pegar os óculos escuros... e a toca também. Tudo bem que não é proibido usar carro hoje, mas pra que chamar atenção?

Ao sair do apartamento (me chamo Fábio), a sensação de subir dois lances de escadas pra chegar ao corredor de saída é a de deixar um esconderijo (codinome: Iobaf). Cruzo a porta e observo o caminho até o carro, só algumas crianças batendo bola. No céu, nenhum helicóptero. Com cuidado, abro a porta que reclama o seu lubrificante. (Tsc!) Sento, ajeito os retrovisores, no esquerdo surge a metade de baixo de um homem -saberia quem era se eu tivesse dirigido por último, ontem. Ajeito-o guiado pela curiosidade, mas o homem é mais rápido e chega antes ao carro. É o porteiro, Edmilson, com voz abafada. Giro a manivela. "Seu jornal, menino". Desconfiado, agradeço, aciono a arma e começo, disparando CO2 pelo estacionamento. Sem dificuldade, Edmilson me permite passar pela portaria. Dobro a esquina, a rua está vazia, "mas esta rua está sempre vazia", converso com o espelho do retrovisor central. Caio na pista nova, que dá acesso a uma das principais avenidas de São Miguel e agora sim: um carro aqui, outro lá, uma blazer pelo retrovisor. Fico mais à vontade, aumento o som, arrisco uns falsetes, dirijo com uma mão só, abro o vidro - "nem pensar". No retrovisor a blazer cada vez maior. Decido ir pela avenida, já que hoje não terá congestionamento. O semáforo fecha, a blazer toma o retrovisor. Observo atento se a porta vai se abrir. Se acontecer, arranco no vermelho, mesmo. Claro, poderiam ser... sei lá, um grupo de "ambientalistas" vingativos. E, na certa, iriam me levar para descontar a raiva que tinham de traidores como eu, que se apóiam na negligência da prefeitura para comprar pães fresquinhos. Iriam se divertir explorando vias férreas pelo meu corpo, tapando emissores de gases poluentes, xingariam minha mãe, dona Kassab... Depois cairiam bêbados, cantando Janis e lamentando a morte de mais um tatu-canastra.

Atento à blazer e ao que poderia acontecer comigo (se eu não chegasse com os pães), nem percebo que o semáforo já está aberto há algum tempo. E tão pouco me dou conta de que já haviam me rendido. Sim, estava preso. Preso por uma blazer, um ônibus, uma guia, uma fiorino branca, um corsa hacth, duas motos...

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Pow! Plaft! Flap!

Muito pior do que a odisséia de ter de sair da Vila Curuçá – “Vila o quê?” – onde moro, com quase 3 horas de antecedência para chegar a Barueri, onde trabalho, pegar carona com pai, tomar trem, fazer baldeação para ao metrô, estudar no fretado…, são os percalços na vida de quem escolhe ser um escritor em troca de reconhecimento. Ou, melhor dizendo, em troca do ganha-pão.

E quem vive disso? Este foi um dos temas propostos para discussão na 3º edição da FLAP, festa literária alternativa a de Paraty (FLIP). Tal tema me arrancou das cobertas do domingocioso, e me despertou a curiosidade de conferir quem eram esses idealistas, que foram capazes de negar o comodismo de um registro em carteira e seu pacote de benefícios para serem livres… livres para se confinar num quarto com suas personagens e dedurar o mundo pela brecha da persiana; esquecer no armário pente, gilete e família; olhar por alguns maços a parede até tragar a le mot juste (a palavra certa), de Flaubert…

Sim, é solitário, e até masoquista para alguns escritores, o processo de criação, e esse talvez seja só o segundo passo, se contarmos como primeiro o fato de abdicar o comodismo de um trabalho remunerado, como eu já disse acima, porque após algumas estações de confinamento no quarto, o escritor ainda terá de desempenhar um papel que não é o seu: o de vendedor… e de bom vendedor. Claro que não me refiro às celebridades literárias da FLIP com suas editoras cativas, mas aos escritores que compunham a mesa do debate da FLAP, como a poetisa Maria Luíza Mendes Fúria. Maria Luíza diz que “no Brasil, nós não temos um esquema, em que a editora permita que o escritor tenha um tempo para criação... que tenha um laço financeiro para sobreviver, ir ao supermercado, ao dentista, pagar o condomínio”.

Há dois mil anos, o poeta latino Ovídio dizia que as folhas de louro, com as quais se faziam coroas para poetas e heróis, só serviam mesmo para temperar o arroz. Mas e hoje, será que mudou alguma coisa? Como esperar que um autor sobreviva sendo ‘fiel’ à poesia, à literatura, enfim, sendo um “trabalhador da palavra”? Fúria acredita que “o escritor pode viver de literatura se ele for jornalista”, como ela, “ou se ele for professor”, como é o caso de outro membro da mesa, o escritor Marcelo Siqueira Ridenti, professor Titular de Ciência Política da UNICAMP. “Eu vivo das minhas aulas”, confirma Ridneti, para desgosto (de parte) da platéia que quer (ou queria) escrever livros (e ponto).

A escritora Andréa del Fuego também confirma essa condição de poligâmica, quando diz fazer “bicos”, que vão de roteiros para cinema a pesquisas para sites de motel. “E quem vive disso? Vivo apesar disso (…) meu segundo livro é uma tiragem esgotada, uma coisa ‘chiquérrima’, onde foram vendidos 107 exemplares. Ou seja, eu não vendo livros”, conta Andréa, para a romântica platéia de dentes amarelos.

Já o último integrante da mesa a se apresentar, o escritor Santiago Nazarian, ele diz não enxergar com “pessimismo o mercado para escritor”. Mas Santiago estava fora d’água… Corrigindo: os outros autores é que estavam, pois, se estivéssemos em uma sala de aula, e houvesse uma chamada oral com a pergunta tema do debate, Santiago seria o único aluno a levantar a mão e responder “eu”, tanto que abandonou seu emprego de redator publicitário. “Tinha medo de que a publicidade contaminasse minha literatura”, conta Nazarian.

Passado alguns dias do debate, e já tomado por um conformismo pós-FLAP na orelha do meu romantismo em ser um escritor – como os coleguinhas em serem astronautas, bombeiros, médicos, bandidos –, ocupava-me em casa reescrevendo projetos do trabalho. Na TV, o escritor (e biólogo) Mia Couto falava para o Roda Viva e para a parede verde da minha sala, até me beliscar: “ser escritor é como uma casa que visito de vez em quando”. Isso me fez repensar o tema do debate. Afinal, viver ou não viver disso? Ser escritor ou estar escritor? A conjugação pouco importa, se pensarmos que a obra de Kafka, por exemplo, deve muito aos seus cargos burocráticos, nos quais o camarada ainda era visto como funcionário exemplar.

Fiquei mais algum tempo ali, ouvindo Mia Couto, depois o desliguei. Ansioso, olhei para o projeto, pus três pontos e me tranquei no quarto para uma visitinha a tal casa do escritor.