domingo, 6 de novembro de 2011

Noel X Beady Eye


Não existe nada mais chinfrim – mais até que esta própria definição – do que dois irmãos do roquenrol rasgando seda publicamente. A prática não vende tablóide, tampouco tira leite de disco e até os dois filhos de Francisco, entre outros vaqueiros do asfalto, já tiraram seus chapéus para a moda inglesa de Noel e Liam Gallagher.

Se o fim do Oasis se deu por causa de uma laringite de Liam ou por este arremessar um violão na cabeça do primogênito ou ainda por Noel se negar vestir a camisa da grife do irmão... eles que lavem essa roupa em Manchester.

Agora, que o barulho feito pelo líder do Beady Eye atraiu mais holofotes do que o seu “Different Gear, Still Speeding”, nisso a gente mete a colher.

A julgar pelo comportamento de Liam, Noel deve ter sido mesmo um irmão muito, mas muito mau, daqueles que trancam o mais novo no quarto escuro e, pior do que mexer em seu estoque de bolachas, tomam o único pacote de talento pra si.

Mas parece que nada botou mais medo em Liam do que o anúncio do tão esperado “Noel Gallagher's High Flying Birds”, álbum de estreia de seu algoz. E, talvez, a prova esteja aí, num dos últimos capítulos desse folhetim. Liam insiste em juntar-se ao Gallagher talentoso, para celebração dos vinte anos do cultuado “(What´s The Story) Morning Glory”, que acontece em 2015.

Será que Liam já começa a se dar conta...? Ou a guitarra de Noel precisa mesmo da pandeirola do irmão para dar liga, como Liam já vem dizendo por aí? Não percam o próximo capítulo.

Estou tocando o solo do Noel pela terceira vez, enquanto preparo sua sentença. Antes, passei pelo Beady Eye, que já não escutava há tempos, desde que caiu na rede, lá pra fevereiro, se bem me lembro. É inevitável essa comparação.

Na época de lançamento do “Different Gear...”, levei alguns dias pra me curar da preguiça que o álbum causou na primeira audição. Depois, com o passar do tempo, até me acostumei e tuitei o seguinte: “@iobaf (...) descobri como curtir o Beady Eye. Deixe o 'disco' no repeat. Lá pela terceeeira/quaaarta volta, o álbum fica... legal. (Y)”

Ok, também não sou muito fã do extinto Oasis, confesso. Mas sempre reconheci o tino de Noel para compor, além de sua qualidade vocal, ironicamente, superior a do principal vocalista (e tenho dito).

Parte dessa minha indiferença é porque lá no auge da banda eu estava envolvido com gente da pesada, do metal; o restante, eu dedico à arrogância dos irmãos Gallagher. Afinal, Noel, também, não é nenhum anjo, apesar de tornar evidente a sua tentativa de ganhar asas no primeiro trabalho.

E “Noel Gallagher's High Flying Birds” bem que voa... Mas voa baixo. No entanto, está a muitos pés do caçula, que ainda brinca de ser John Lennon.

(To be continued...)

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Ser ou não ser?

Wagner Moura aceita o desafio de ser o principal personagem de Shakespeare

Depois de viver o conflituoso capitão Nascimento, no filme ‘Tropa de Elite’, Wagner Moura encarna o clássico dilema de ‘Hamlet’. Além de atuar, Moura é produtor e co-autor da tradução do espetáculo, em cartaz no teatro Faap.

Como agiria o truculento capitão do BOPE diante das agruras – e que não são poucas – vividas pelo príncipe da Dinamarca? Como se já não bastasse perder o sono com visões do pai, um defunto que pede por vingança, o príncipe ainda tem de aceitar o casamento de sua mãe com o tio trapaceiro e encarar a morte da amada. Para quem acha que o capitão tentaria encontrar um substituto, acertou. Alguém à sua altura? Errado. À altura de Wagner Moura. Para o diretor do espetáculo, Aderbal Freire-Filho, responsável pela escolha de Moura para substituir outros tantos Hamlets (competentes), o ator possui emoção e inteligência, dois elementos importantes para se encenar um personagem tão complexo como o herói shakespeariano.

Não ser
Com atores que se dividem entre atuar e filmar suas performances em cima de um palco sem castelos, a montagem de Aderbal e Moura não é o que o público está acostumado a ver. O texto, traduzido do original, abandonou os traços de séculos atrás para dar voz ao coloquialismo. Esse contemporâneo Hamlet de fala, também usa jeans e tênis. Já as dúvidas vividas pelo mocinho, são as mesmas.


Moura e Amarante, autor da trilha para o espetáculo

quinta-feira, 29 de maio de 2008

É de chorar (Parte 1)

... A última vez? A última vez... (pigarro) eu já era adulto? Não... Sim, sim, a última vez que eu chorei eu já era adulto. É verdade. Aliás, chorei por ter de me tornar um. Pois é (pigarro), o grande cisco da responsabilidade de ser pai me pegou de jeito pelo travesseiro, fazendo com que eu reproduzisse a mesma choradeira de quando vi a Cuca, pessoalmente. Meus pais riam e diziam: “Num ‘chola’, você não é mocinho? É só a Cuca, filho, a Cuca...” E eu: “Por acaso, essa aí não é aquela da musiquinha... aquela que irá me pegar caso eu não caia no sono, e depressa?” Eu teria soltado esta aos sádicos que já se diziam meus pais, mas falar é complicado quando lhe enfiam uma chupeta na boca.

No entanto, a diferença de (tosse)... a diferença de eu ver, sei lá... um réptil, que anda, fala e usa batom, ou de saber que minha namorada – hoje, esposa – carrega não uma, mas duas herdeiras de um papai que vivia de bicos, está na causa. Se nos dois episódios o tal pranto foi resultado do impedimento de voltar pra barriga da minha mãe, em outras circunstâncias das mais variadas, que vão desde o São Paulo campeão a funerais de avó e tios, não teve choro, no máximo vela. Não consegui deixar rolar uma única gota de lágrima.

(Pausa para água) Momentos após o nascimento das minhas filhas, na sala de espera da maternidade, alguns familiares ostentavam cada um o seu par de olhinhos úmidos ao passo que me parabenizavam. Não peço para que acredite, mas essas gratificações não passavam de um disfarce para a inconveniente pergunta que viria a seguir: “E aí, chorou?” Pensei ligeiramente em mentir, mas me lembrei de que mentira tem perna curta para pais que são filmados na sala de parto. Um mês depois, assistia ao filme do nascimento e aproveitava para tentar encontrar ali alguma passagem em que eu demonstrasse, pelo menos, alguma intenção de pôr pra fora toda a emoção sentida naquele dia. E encontrei. Orgulhoso, exibi o tal choro oculto a uma tia da minha esposa: “Tá vendo aí, ó? Nessa hora, eu tava chorando... por den-tro.” E: “Ah, mas assim não tem graça”, sentenciou a titia.

É (tosse), não chorar pode causar exclusão social. Sim... eu sei que se parece mais com um daqueles avisos pra fumantes, mas a advertência tem fundamento. (Pausa para água) Depois de semanas tentando me enturmar no novo colégio, enfim, uma das panelas resolvia falar sobre cinema. “Perfeito!” Era só eu fazer com que rissem, lembrando-os de filmes de chorar de rir, e, então, eu ganharia passe livre. É, ficaria à vontade, sabe... para lançar na rodinha qualquer tipo de bobagem, qualquer uma... Menos a de atestar minha insensibilidade, confessando a um monte de menininhas que eu não chorei em O Rei Leão. Mulheres! Tenho uma tia que chorou em Jamaica abaixo de zero.

Já a morte do piloto (e chorão) Ayrton Senna teve sua atenção dividida. Aquele primeiro de maio também me marcou com outra grande surpresa. (Tosse) Sim... já vai entender. Naquela noite, eu assistia com meus pais a uma dessas reportagens especiais de final de domingo, meladas de depoimentos saudosos, imagens em slow motion e trilhas melancólicas de fazer até “chefe de família” apelar para o lencinho. A fim de compartilhar um “humor negro” que me ocorreu, inclinei-me para eles. E foi então que vi algo ainda mais surpreendente do que uma batida na curva Tamburello, a trezentos quilômetros por hora: o meu pai com os olhos vermelhos. O mesmo que me... me reprimiu, de certa forma... por abrir a boca para a Cuca... estava choramingando... de cueca... no sofá. Minha mãe, embora estivesse de pijama, escancarava ainda mais a sua intimidade, chegando até a soluçar... E quanto a mim? (Pausa) Tarde demais. Tarde demais. Ironicamente, já estava arraigado em mim os “bons modos” de que mocinhos não choram.

Mas (tosse), felizmente, alguns anos depois, minha grande chance de provar que eu também tinha um coração chegaria pelas mãos de minha prima e seu noivo. O par trazia um convite para que minha esposa e eu fôssemos seus padrinhos de casamento. Finalmente, o meu choro tinha dia, hora e local. E se o fato de minha prima me escolher para ser seu padrinho, entre tantos outros primos, já rendesse àquele momento algumas lágrimas extras, imagine só ser escolhido também pelo noivo? Como por quê? Isso não só dobravam as expectativas em cima do presente, mas na quantidade de lágrimas com a qual eu teria de arcar.

Desafio aceito. Resolvi, então, investir na (minha) grande noite: fui às compras. Comprei sapato, terno, gravata e até uma camisa lilás, chegando a pensar que o tom faria de mim um homem mais sensível. Olhava-me pelo espelho do provador e já podia imaginar os comentários que cairiam sobre mim: “Menina, olha que chorão mais charmoso! (...) Ô, homem sensível! (...) Aquele ali, o da esquerda, menina... Ele, sim, gosta dos noivos, de verdade! (...)” Por outro lado... (tosse) eu pensava... (pausa para água) no constrangimento (tosse)... eu pensava no constrangimento pelo qual eu passaria caso destoasse do grupo de padrinhos, não manifestando os meus sentimentos. Gafe bem pior do que subir no altar de terno cáqui em meio a senhores de preto. Para padrinhos, chorar em casamento é regra de etiqueta!

Já nos bastidores da cerimônia, minutos antes de nossa entrada, surgiam as apostas em cima dos que primeiro entregariam os pontos lá em cima, no altar. Os padrinhos menos experientes, eles respiravam fundo enquanto aprendiam com os mais entendidos a estocarem o bolso do paletó com guardanapos para estancar a emoção e conservar os rímeis de seus pares. Eu, em compensação, não impediria que o alívio rolasse até dar gosto à boca... exibiria, com orgulho, minha façanha para o registro das câmeras, bem na hora dos cumprimentos. (Pausa para água)

Bem... com noivo e padrinhos a postos e, consequentemente, a poucos minutos dos cumprimentos, as cornetas já podiam entornar a tão esperada marcha. Mas a noiva preferiu explorar ainda mais o clima de “suspense”, e ser anunciada por Also Spracht Zarathustra – o belo poema sinfônico de Strauss que, para minha infelicidade, faz parte da trilha do filme 2001: uma odisséia no espaço. Algumas tias, primas e amigas da noiva já começavam a se borrar, e eu só conseguia me lembrar da cena de 2001 em que o esperto macaco descobre que osso serve mesmo é para dar na cabeça da macacada do outro bando – Macacos me mordam! Por que insistem nessa música para casamentos?!

E então? (Tosse) A doutora já deve saber que, como no sexo, a cobrança por um bom desempenho... essa ansiedade aliada à imagem de um símio com um osso nas mãos (risos) faz com que nós, homens, não correspondamos às expectativas. É. Não cheguei lá. Brochei! Admito. E não só uma. Duas (pigarro): com minha bela prima e, em seguida, com o noivo, um precoce que já se molhava antes mesmo de nos tocarmos. E assim, em coisa de segundos, quando olhei ao meu redor, estava em meio a uma suruba daquelas, como um mero observador. Um voyeur assistindo ao gozo alheio. Um frígido, que se chegou a se umedecer, foi graças ao discurso do juiz (pausa para água)... com múltiplos e prazerosos bocejos.

Exposição revela integração Brasil-Japão nas artes

O Club Transatlântico, em parceria com o Consulado Geral do Japão em São Paulo, abrirá as portas para a cultura da Terra do Sol Nascente com a exposição em comemoração aos 100 anos da Imigração Japonesa. O objetivo é mostrar que a contribuição daquele país não se limita apenas à agricultura, ao contrário, atingiu todos os campos, inclusive a arte de maneira singular e expressiva.

A exposição contará com duas formas de expressão, a arquitetura, representada pelos templos, em quatro maquetes cedidas pelo consulado, e as artes plásticas pelas mãos de Wakabayashi, artista japonês influenciado pelos ares brasileiros.

Kazuo Wakabayashi imigrou em 1961 e, na bagagem, trazia uma carta de apresentação para Tomie Ohtake. Um ano depois, o pintor já realizava sua primeira exposição em território brasileiro, e dava início a uma trajetória de sucesso, que dura até hoje. Considerado pelo poeta e jornalista, Carlos Soulié, como o pintor japonês (radicado no Brasil) que mais traz em seus traços a cultura de seu país, Wakabayashi admite que, apesar de ter em seu estilo o lado obscuro do pós-guerra, período em que saiu do Japão, foi influenciado pelas diversidade de cores do país que escolheu para viver. O artista levou para sua arte uma nova forma de perceber o Brasil, expressando por meio de suas pinturas e gravuras uma forma peculiar de fazer arte. Para a exposição no Club Transatlântico, foram selecionadas cerca de 30 obras, algumas pertencentes a colecionadores.

Já no campo da arquitetura, quem visitar o Club durante a exposição irá conhecer construções japonesas fabulosas como o Portal Shureimon, eleito como um dos principais pontos turísticos da Província de Okinawa; o Santuário xintoísta Kasuga Taisha, um dos mais famosos e mais antigos do Japão e o Templo Yakushiji, famoso pelo seu belo pagode de três andares de 37,9 m. Todos são considerados Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco, e serão representados por maquetes. O Santuário Nikko Toshogu também estará bem representado em escala reduzida, o que, no entanto, não impedirá de impressionar o público com a vivacidade de sua ornamentação.

Acontece...
De 16 de junho a 10 de julho
De segunda a sexta das 9 às 22h
Entrada franca

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Freegans


Há alguns anos, num momento oportuno, em que eu cultivava barba e "idéias revolucionárias", conheci os vegans, esses que, além de não consumirem nenhum produto de origem animal, desprezam tudo o que seja testado nos bichos. Os vegans, que, embora, o nome se pareça com aqueles dados a criaturas más dos jogos de RPG, pregavam uma ideologia regada de paz, amor e muita alface.

Sempre apoiados em histórias com animais no papel principal, um deles me contou a de um cavalo, um andaluz, que chorou ao ouvir seu vizinho de baia emitir rinchado estranho enquanto virava bife. Depois de ouvir a comovente história, decidi que a partir de então eu não comeria nem carne de pangaré, entendi que seria um vegan (ou um "natureba", como seria chamado por aí)... até chegar o dia do churrasco na casa do tio Ermínio.

Após anos de muito cupim, coxa, fraldinha, picanha, costela..., soube por uns e outros que aqueles vegans tinham ganhado novo nome: freegans, e que, agora, além da ideologia, procuravam por meios alternativos de sobrevivência, na tentativa de burlar o sistema capitalista, até que se vissem livres dele. Frees, saca?

Quando a fome apertava, eles surgiam nos finais das feiras de rua atrás de tomates (pouco amassados), bananas fora do cacho...; nos lixos, reviravam aqui e ali, e lá estava uma peça de roupa ou algum utensílio doméstico. Dizem que uma deles até moto chegou a trocar pelo ecológico skate; já um outro, desfez o nó na gravata italiana e foi vender livros e camisetas na Alameda das Flores, em São Paulo. Sim, os freegans, (embora irritados com este rótulo que deram a eles) iam muito bem, estavam felizes e de consciência limpa, virando-se como podiam, à margem da economia.

Mas, em toda comunidade, por mais libertária que seja, figuram os fanáticos. Esses coitados, que de tanto se apegarem a discursos subjetivos, acabam por se "enforcar na mesma corda da liberdade" que pregam. Acontece que, lá pelas bandas do ABC, onde alguns freegans dividem um casarão desabitado, soube que chegou um rapaz novo para ajudar com a feira. Aproveitando-se das linhas tortas da cartilha freegan, o esperto rapaz burlou esse "sistema" para fugir da responsabilidade. Disse que abandonou a namorada (ainda de barriga) depois de saber que na carne dela havia produto industrializado. "Silicone, tsc, vê se pode!"

terça-feira, 30 de outubro de 2007

O mecânico


Toct, toct, toct, toct... “Cuidado com sola de madeira, rapaz”, diz um velho ao dono do par de percussões ambulantes que entra na mesma padaria onde o primeiro afoga a mulher e o amante em copos de maria-mole. O rapaz lhe dá as costas e diz logo a que veio: “Cinco pãezinhos.” O velho sorri para o desdém, traga num gole os dois últimos dedos da bebida e bate firme o copo no balcão. Sem a mesma firmeza nas pernas, vai em direção ao rapaz. Ajeita as calças e explica: “É pro bem das suas costas, rapaz. Viu? Pro bem das suas costas.” Sem retorno, o velho tira alguns miúdos do bolso, entrega-os ao caixa e, resmungando, vai para o seu caminhão. Liga-o, engata a primeira e, ao rapaz, uma última: “E pro bem da sua cabeça!” E arranca na gargalhada.

O rapaz paga o caixa, enfia o troco no bolso, põe os pães debaixo do braço e a deixa do velho caminhoneiro na cabeça. “Sujeitinho!”, exclama num daqueles pensamentos que escapam pela boca. “Como assim... pro bem da minha cabeça?” Quanto à dor nas costas... “Pode ser”, diz buscando no pulso a hora do antiinflamatório para a lombar. A dor era constante, e, no entanto, o rapaz nunca tinha apontado o dedo para os solados, culpava apenas o peso das peças dos maquinários da fábrica, onde começara ainda como aprendiz. O título de “mecânico de manutenção” nunca entraria para o seu repertório de planos quando ainda improvisava alguns trocados e repiques na bateria do seu grupo de samba. Apesar disso, já faz alguns dissídios que tira o suficiente para manter a mulher em casa, passando o café para combinar com os pães que ele leva debaixo do braço. “Aquela, sim... companheira de verdade. Aquela, sim.” Repetia a quem lhe perguntasse. “Aquela, sim!” Nem bem completava a segunda volta de chave, na fechadura do portão, e já abria a porta para recebê-lo. Sabia que era ele, pois, além do relógio e os sapatos o entregarem, assoviava e cantarolava as mesmas músicas que, inclusive, embalaram sua festa de casamento.

Durante sete, dos quase oito anos de casório, os dias úteis se repetiram com pães – quatro para ele, um para mulher – banhados em café forte; o trabalho pesado e a “que dor nas costas!”, sempre se queixava; as solas de madeira acompanhando as velhas canções; as solas de madeira, sua mulher recebendo-o na porta; as solas de madeira... “Cuidado com sola de madeira, rapaz”, lembrava-se do velho caminhoneiro. “Pior que ele tem razão. Talvez, fosse melhor trocar de sapatos... trocar, não”, corrigia-se, recordando que o mocassim foi presente da mulher. “... Vou trocar só as solas, então”, e assim entoou: “Amanhã...”, tomava emprestado um dos versos de uma das velhas canções. “Amanhã...”, sairia um pouco mais cedo do trabalho e trocaria os solados de madeira pelos de borracha. “Amanhã... Amanhããã!” (D)

E ainda que a troca das solas pareça banal, o rapaz gostava de tirar som com elas. E não se engane! Não pense, você, que dali só se pisavam sons cadenciados, previsíveis... Embora seguisse um ritmo ditado pela pressa em tomar o seu café da tarde, sabia dar andamento aos assovios, mesmo nas pausas de semáforos, por exemplo. Como se saísse de uma semi para uma colcheia, o rapaz segurava a levada em um pé só, no tum, tum, tum pulsante do bumbo, como que aguardando um sinal verde para tss, tá, tss, tá… retornar à levada da introdução. Nas quebras de ritmo, situações em que tentava se desviar de obstáculos paulistanos, como lixos, mendigos e vira-latas; ou quando descia da rua para a calçada, arranjava logo um repique, uma virada.

E foi na virada dos ponteiros que, após executar uma de suas melhores performances com o derradeiro par de madeiras, enfim, o rapaz chega à sapataria. “Luthier”, ele lê na fachada. Sorri para ironia desse que era nome dado a quem conserta instrumentos musicais. Quantas vezes não levou surdo, caixa e tom-tons para que um luthier os afinasse; e quantas vezes não houve dissonância entre ele e o pai, que ao final venceria, fazendo-o trocar baquetas por chave philips. Guardou raiva do pai até sua morte, momento oportuno para enterrá-la. Mas, ali, sentado, assistindo ao sapateiro calar seus sapatos, reviveu o episódio com o pai, sentindo um pout-pourri de saudade e indignação...

Enquanto o rapaz curte a nostalgia em ré menor, acho que vale acrescentar mais um motivo que justifique o seu apego aos sapatos. Não, dois: o primeiro é que ele se sentia, digamos... imponente com o som produzido pelo par. É. Principalmente quando andava por alguns corredores convidativos da fábrica, em que a acústica era generosa com a pulsação de seus passos, roubando dos pacotes, fitas adesivas, caixas, a atenção de certas operárias. O segundo motivo, e não menos plausível, é que ele acreditava que as solas de madeira protegiam seus pés do calor excessivo do chão da fábrica. É isso.

... paga o sapateiro, calça os novos sapatos e parte com as velhas lembranças. As mãos no bolso e os olhos no chão davam ao ritmo de seus passos o tom da melancolia. Isso ficou claro quando, momentos antes, apertou o passo para saltar uma seqüência de pisos. Foi como se percorresse todas as peças de uma bateria usando apenas as mãos. Depois, tentou até usar os dedos, com estalos e batuques na coxa, mas, nem de longe, possuíam o mesmo virtuosismo dos pés e, tampouco, o timbre da madeira. Frustrado, passou por tabloides e folders atirados pelas calçadas, de onde subia, descia, e nada, nenhum repique, nenhuma virada. Acaba de passar a padaria, também. Hoje não quer pães. Hoje não quer preliminares.

Ao chegar em casa, nem nota, mas já passa o cadeado no portão enquanto a porta ainda permanece fechada. Provavelmente, a mulher não o ouvira chegar, já que hoje, à capela, também não quis nem assovio e nem cantoria. Abre a porta, e, mesmo num raro dia de 15/20 minutos de descompasso com os ponteiros, lá está o café, cheiroso e fiel. Nhec... Um ruído que parece vir do quarto, irrompe o silêncio, onde reina o ponteiro do relógio de parede e o motor da geladeira. O rapaz acaba se animando com a possibilidade de subir e flagrar a mulher saindo do banho. Há quanto tempo não a tinha no banheiro. Talvez precisasse mais disso, de variar o cardápio, esquecer o café, comprar pães, sim, mas de queijo, de batata; voltar a tocar com seu antigo grupo nos finais de semana; quem sabe até pedir a conta na fábrica.
Ao pé da escada, o ruído, agora um pouco mais intenso e constante. Desconfiado, sobe um degrau (nhec), dois, três (nhec, nhec)... Para. O coração, não, este acelera. Sente náusea. Controla-se, engole seco. Ameaça descer (expira... inspira...), sobe. Pensa. Vai até o móvel que guarda o instrumento para momentos de improviso. Nunca o usou, guardava-o para tocar visitas indesejadas. Envolve-o na mão mais firme, usa as costas da outra mão para a testa molhada. Morde o beiço, acomoda o instrumento na case de onde o tirou. Leva as mãos à cabeça e a esfrega, esfrega e nhec e tapa os ouvidos e esfrega e nhec e tapa e nhec e pega o instrumento e aponta o passo para o nhec e tic, olha no pulso... tac, em cima para o antiinflamatório.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Preso por dirigir no Dia sem Carro

É mais ou menos assim nas manhãs de sábado: um ronco na barriga acorda uma das filhas, um uníssono “quelo mamá!” irrita a esposa e um cotovelo carinhoso me leva à cozinha. Arrasto-me até a geladeira, lá ficam os dois copos da noite anteriror, que completo com leite - 150 ml/cada. Um minuto e quarenta e seis segundos, nem quarenta e cinco, nem quarenta e sete. Este é o tempo pro sucesso dos achocolatados, pais! É também o tempo que marca a contagem regressiva para que eu livre as meninas do aperto na bexiga.

É dada a largada: - antes esfrego os remelentos - meio segundo é precioso quando se tem duas bacias de roupa pra passar, então, geralmente começo pela Babu, que fica na cama encostada à parede da porta. Babu gosta de me fazer carinho no braço enquanto se alivia do aperto; já Dorinha raramente faz isso, - Pi... Pi... Pi. - prefere encostar sua cabeça preguiçosa no vão das minhas coxas, e sempre ri quando deixa escapar um ‘punzinho’ que parece acionar o xixi. Levo as duas de volta pra cama, às vezes recebo uma mão da esposa. Quem sabe se eu a auxiliasse com o banho, não me ajudaria com mais freqüência? Bom, depois penso nisso, porque, eu não sei se você percebeu, mas o microondas já apitou há algumas linhas acima. Neste caso, mais 12 minutinhos.

É raro, mas também me atraso pra pegar os mamás quando como demais à noite. Ah! É raro também eu fazer o café. Preguiça, talvez. Mas, confesso, é por preguiça que sempre, sempre vou de carro até a padaria. Isso quando não me aproveito dos amanhecidos, mesmo... isso quando não se comemora o Dia Mundial sem Carro. O que foi? Duvida da minha consciência ambiental, é? Tudo bem que não temos ainda muito o que comemorar, afinal este é o só o terceiro dia do evento. E o fato de que a prefeitura nem sequer mencionou o Dia no site até a véspera, não paga o meu mico de espalhar óxido de nitrogênio por aí, sozinho. A prefeitura não estimula a adoção de políticas públicas de transportes coletivos, eu sei, mas a padaria não fica tão longe assim, fica? Se bem que eu ouvi dizer que hoje chove. Olha, quer saber, eu vou! Mas, eu juro, juro que se tivesse uma bicicleta... Além do mais, é cedo ainda, ninguém vai notar. E não é lei, é? Se fosse ainda dava até pra... Tá bom, eu vou. Mas antes é bom pegar os óculos escuros... e a toca também. Tudo bem que não é proibido usar carro hoje, mas pra que chamar atenção?

Ao sair do apartamento (me chamo Fábio), a sensação de subir dois lances de escadas pra chegar ao corredor de saída é a de deixar um esconderijo (codinome: Iobaf). Cruzo a porta e observo o caminho até o carro, só algumas crianças batendo bola. No céu, nenhum helicóptero. Com cuidado, abro a porta que reclama o seu lubrificante. (Tsc!) Sento, ajeito os retrovisores, no esquerdo surge a metade de baixo de um homem -saberia quem era se eu tivesse dirigido por último, ontem. Ajeito-o guiado pela curiosidade, mas o homem é mais rápido e chega antes ao carro. É o porteiro, Edmilson, com voz abafada. Giro a manivela. "Seu jornal, menino". Desconfiado, agradeço, aciono a arma e começo, disparando CO2 pelo estacionamento. Sem dificuldade, Edmilson me permite passar pela portaria. Dobro a esquina, a rua está vazia, "mas esta rua está sempre vazia", converso com o espelho do retrovisor central. Caio na pista nova, que dá acesso a uma das principais avenidas de São Miguel e agora sim: um carro aqui, outro lá, uma blazer pelo retrovisor. Fico mais à vontade, aumento o som, arrisco uns falsetes, dirijo com uma mão só, abro o vidro - "nem pensar". No retrovisor a blazer cada vez maior. Decido ir pela avenida, já que hoje não terá congestionamento. O semáforo fecha, a blazer toma o retrovisor. Observo atento se a porta vai se abrir. Se acontecer, arranco no vermelho, mesmo. Claro, poderiam ser... sei lá, um grupo de "ambientalistas" vingativos. E, na certa, iriam me levar para descontar a raiva que tinham de traidores como eu, que se apóiam na negligência da prefeitura para comprar pães fresquinhos. Iriam se divertir explorando vias férreas pelo meu corpo, tapando emissores de gases poluentes, xingariam minha mãe, dona Kassab... Depois cairiam bêbados, cantando Janis e lamentando a morte de mais um tatu-canastra.

Atento à blazer e ao que poderia acontecer comigo (se eu não chegasse com os pães), nem percebo que o semáforo já está aberto há algum tempo. E tão pouco me dou conta de que já haviam me rendido. Sim, estava preso. Preso por uma blazer, um ônibus, uma guia, uma fiorino branca, um corsa hacth, duas motos...

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Pow! Plaft! Flap!

Muito pior do que a odisséia de ter de sair da Vila Curuçá – “Vila o quê?” – onde moro, com quase 3 horas de antecedência para chegar a Barueri, onde trabalho, pegar carona com pai, tomar trem, fazer baldeação para ao metrô, estudar no fretado…, são os percalços na vida de quem escolhe ser um escritor em troca de reconhecimento. Ou, melhor dizendo, em troca do ganha-pão.

E quem vive disso? Este foi um dos temas propostos para discussão na 3º edição da FLAP, festa literária alternativa a de Paraty (FLIP). Tal tema me arrancou das cobertas do domingocioso, e me despertou a curiosidade de conferir quem eram esses idealistas, que foram capazes de negar o comodismo de um registro em carteira e seu pacote de benefícios para serem livres… livres para se confinar num quarto com suas personagens e dedurar o mundo pela brecha da persiana; esquecer no armário pente, gilete e família; olhar por alguns maços a parede até tragar a le mot juste (a palavra certa), de Flaubert…

Sim, é solitário, e até masoquista para alguns escritores, o processo de criação, e esse talvez seja só o segundo passo, se contarmos como primeiro o fato de abdicar o comodismo de um trabalho remunerado, como eu já disse acima, porque após algumas estações de confinamento no quarto, o escritor ainda terá de desempenhar um papel que não é o seu: o de vendedor… e de bom vendedor. Claro que não me refiro às celebridades literárias da FLIP com suas editoras cativas, mas aos escritores que compunham a mesa do debate da FLAP, como a poetisa Maria Luíza Mendes Fúria. Maria Luíza diz que “no Brasil, nós não temos um esquema, em que a editora permita que o escritor tenha um tempo para criação... que tenha um laço financeiro para sobreviver, ir ao supermercado, ao dentista, pagar o condomínio”.

Há dois mil anos, o poeta latino Ovídio dizia que as folhas de louro, com as quais se faziam coroas para poetas e heróis, só serviam mesmo para temperar o arroz. Mas e hoje, será que mudou alguma coisa? Como esperar que um autor sobreviva sendo ‘fiel’ à poesia, à literatura, enfim, sendo um “trabalhador da palavra”? Fúria acredita que “o escritor pode viver de literatura se ele for jornalista”, como ela, “ou se ele for professor”, como é o caso de outro membro da mesa, o escritor Marcelo Siqueira Ridenti, professor Titular de Ciência Política da UNICAMP. “Eu vivo das minhas aulas”, confirma Ridneti, para desgosto (de parte) da platéia que quer (ou queria) escrever livros (e ponto).

A escritora Andréa del Fuego também confirma essa condição de poligâmica, quando diz fazer “bicos”, que vão de roteiros para cinema a pesquisas para sites de motel. “E quem vive disso? Vivo apesar disso (…) meu segundo livro é uma tiragem esgotada, uma coisa ‘chiquérrima’, onde foram vendidos 107 exemplares. Ou seja, eu não vendo livros”, conta Andréa, para a romântica platéia de dentes amarelos.

Já o último integrante da mesa a se apresentar, o escritor Santiago Nazarian, ele diz não enxergar com “pessimismo o mercado para escritor”. Mas Santiago estava fora d’água… Corrigindo: os outros autores é que estavam, pois, se estivéssemos em uma sala de aula, e houvesse uma chamada oral com a pergunta tema do debate, Santiago seria o único aluno a levantar a mão e responder “eu”, tanto que abandonou seu emprego de redator publicitário. “Tinha medo de que a publicidade contaminasse minha literatura”, conta Nazarian.

Passado alguns dias do debate, e já tomado por um conformismo pós-FLAP na orelha do meu romantismo em ser um escritor – como os coleguinhas em serem astronautas, bombeiros, médicos, bandidos –, ocupava-me em casa reescrevendo projetos do trabalho. Na TV, o escritor (e biólogo) Mia Couto falava para o Roda Viva e para a parede verde da minha sala, até me beliscar: “ser escritor é como uma casa que visito de vez em quando”. Isso me fez repensar o tema do debate. Afinal, viver ou não viver disso? Ser escritor ou estar escritor? A conjugação pouco importa, se pensarmos que a obra de Kafka, por exemplo, deve muito aos seus cargos burocráticos, nos quais o camarada ainda era visto como funcionário exemplar.

Fiquei mais algum tempo ali, ouvindo Mia Couto, depois o desliguei. Ansioso, olhei para o projeto, pus três pontos e me tranquei no quarto para uma visitinha a tal casa do escritor.