segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Preso por dirigir no Dia sem Carro

É mais ou menos assim nas manhãs de sábado: um ronco na barriga acorda uma das filhas, um uníssono “quelo mamá!” irrita a esposa e um cotovelo carinhoso me leva à cozinha. Arrasto-me até a geladeira, lá ficam os dois copos da noite anteriror, que completo com leite - 150 ml/cada. Um minuto e quarenta e seis segundos, nem quarenta e cinco, nem quarenta e sete. Este é o tempo pro sucesso dos achocolatados, pais! É também o tempo que marca a contagem regressiva para que eu livre as meninas do aperto na bexiga.

É dada a largada: - antes esfrego os remelentos - meio segundo é precioso quando se tem duas bacias de roupa pra passar, então, geralmente começo pela Babu, que fica na cama encostada à parede da porta. Babu gosta de me fazer carinho no braço enquanto se alivia do aperto; já Dorinha raramente faz isso, - Pi... Pi... Pi. - prefere encostar sua cabeça preguiçosa no vão das minhas coxas, e sempre ri quando deixa escapar um ‘punzinho’ que parece acionar o xixi. Levo as duas de volta pra cama, às vezes recebo uma mão da esposa. Quem sabe se eu a auxiliasse com o banho, não me ajudaria com mais freqüência? Bom, depois penso nisso, porque, eu não sei se você percebeu, mas o microondas já apitou há algumas linhas acima. Neste caso, mais 12 minutinhos.

É raro, mas também me atraso pra pegar os mamás quando como demais à noite. Ah! É raro também eu fazer o café. Preguiça, talvez. Mas, confesso, é por preguiça que sempre, sempre vou de carro até a padaria. Isso quando não me aproveito dos amanhecidos, mesmo... isso quando não se comemora o Dia Mundial sem Carro. O que foi? Duvida da minha consciência ambiental, é? Tudo bem que não temos ainda muito o que comemorar, afinal este é o só o terceiro dia do evento. E o fato de que a prefeitura nem sequer mencionou o Dia no site até a véspera, não paga o meu mico de espalhar óxido de nitrogênio por aí, sozinho. A prefeitura não estimula a adoção de políticas públicas de transportes coletivos, eu sei, mas a padaria não fica tão longe assim, fica? Se bem que eu ouvi dizer que hoje chove. Olha, quer saber, eu vou! Mas, eu juro, juro que se tivesse uma bicicleta... Além do mais, é cedo ainda, ninguém vai notar. E não é lei, é? Se fosse ainda dava até pra... Tá bom, eu vou. Mas antes é bom pegar os óculos escuros... e a toca também. Tudo bem que não é proibido usar carro hoje, mas pra que chamar atenção?

Ao sair do apartamento (me chamo Fábio), a sensação de subir dois lances de escadas pra chegar ao corredor de saída é a de deixar um esconderijo (codinome: Iobaf). Cruzo a porta e observo o caminho até o carro, só algumas crianças batendo bola. No céu, nenhum helicóptero. Com cuidado, abro a porta que reclama o seu lubrificante. (Tsc!) Sento, ajeito os retrovisores, no esquerdo surge a metade de baixo de um homem -saberia quem era se eu tivesse dirigido por último, ontem. Ajeito-o guiado pela curiosidade, mas o homem é mais rápido e chega antes ao carro. É o porteiro, Edmilson, com voz abafada. Giro a manivela. "Seu jornal, menino". Desconfiado, agradeço, aciono a arma e começo, disparando CO2 pelo estacionamento. Sem dificuldade, Edmilson me permite passar pela portaria. Dobro a esquina, a rua está vazia, "mas esta rua está sempre vazia", converso com o espelho do retrovisor central. Caio na pista nova, que dá acesso a uma das principais avenidas de São Miguel e agora sim: um carro aqui, outro lá, uma blazer pelo retrovisor. Fico mais à vontade, aumento o som, arrisco uns falsetes, dirijo com uma mão só, abro o vidro - "nem pensar". No retrovisor a blazer cada vez maior. Decido ir pela avenida, já que hoje não terá congestionamento. O semáforo fecha, a blazer toma o retrovisor. Observo atento se a porta vai se abrir. Se acontecer, arranco no vermelho, mesmo. Claro, poderiam ser... sei lá, um grupo de "ambientalistas" vingativos. E, na certa, iriam me levar para descontar a raiva que tinham de traidores como eu, que se apóiam na negligência da prefeitura para comprar pães fresquinhos. Iriam se divertir explorando vias férreas pelo meu corpo, tapando emissores de gases poluentes, xingariam minha mãe, dona Kassab... Depois cairiam bêbados, cantando Janis e lamentando a morte de mais um tatu-canastra.

Atento à blazer e ao que poderia acontecer comigo (se eu não chegasse com os pães), nem percebo que o semáforo já está aberto há algum tempo. E tão pouco me dou conta de que já haviam me rendido. Sim, estava preso. Preso por uma blazer, um ônibus, uma guia, uma fiorino branca, um corsa hacth, duas motos...